SÍNTESE JURÍDICA DA PRÁTICA CONHECIDA COMO
“RACHADINHA”
Por Ariana Anari Gil
"É o escárnio à decência,
às regras de conduta, à Lei, ao próprio ordenamento jurídico e à coletividade.”
Pedro
Manoel Abreu Desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina.
O
termo “rachadinha”, tem tomado os meios de comunicação e mídias sociais de
nosso país, como “nova” forma de combate à corrupção, situação que merece
análise e reflexão dos cidadãos, vez que, algo tão grave, pasmem, está sendo
tratado por “alguns” cidadãos e políticos investigados pela prática, como algo
banal, sem importância, corriqueira.
A
prática conhecida vulgarmente como “rachadinha”, é ação praticada geralmente
por parlamentares federais, estaduais e municipais, que acordam ou exigem
mediante permanência de emprego, repasse de parte dos salários de funcionários
que nomeiam para seus gabinetes, caracterizando vantagem indevida em razão da
função, porém, os julgados nos mostram várias teses em torno da modalidade
criminosa que representa, vejamos:
Primeiramente é preciso entender o conceito da
prática conhecida como “rachadinha” segundo Pedro Arruda, cientista político e
professor da PUC – SP, a “rachadinha” é:
“a
rachadinha é caracterizada pela transferência de salários de assessores para o
parlamentar ou secretário a partir de um acordo pré-estabelecido ou como
exigência para a função, a rachadinha pode ou não envolver a contratação de
funcionários fantasmas. O esquema envolve repasses de quantias menores quando
comparadas a grandes casos de corrupção – por movimentar valores na faixa dos
milhares e não milhões, isso se reflete no perfil político que comete a prática.
É uma prática típica de parlamentares de baixo clero e políticos provincianos,
como vereadores nas câmaras municipais e funcionários de baixo escalão”[1]
Para
Vera Chemim constitucionalista e mestre em direito público administrativo, pela
FGV, a “rachadinha” é”
“rachadinha”
“é uma divisão de proventos, de alguma vantagem financeira, por deliberação de
um agente público"
Marilda Silveira, professora de direito
administrativo da Escola de Direito do Brasil, a "rachadinha":
“pode
ocorrer de maneiras diversas. "Uma forma bastante comum é se aproveitar de
alguém que está desesperado para conseguir um emprego e fazer com que o
funcionário divida o dinheiro de sua remuneração", diz. "O combinado
pode ser, por exemplo, enviar uma fatia do dinheiro para a irmã do
político", afirma Silveira.[2]
Contudo
embora haja um conceito pré-definido, considerando a prática da “rachadinha”
como recebimento de vantagem ilícita devido à função pública ocupada, que pode
ocorrer de diversas formas, inclusive acordada ou sob “ameaça” da perda de
emprego, nossos juristas e julgados, não tem apresentado teses e fundamentação
uníssona sobre o tema que tem invadido o cotidiano dos brasileiros, vejamos:
Alguns juristas e julgado tipificam a prática da “rachadinha” como crime de
peculato (julgado abaixo), que segundo o dicionário Houaiss consiste “na
subtração ou desvio, por abuso de confiança, de dinheiro público ou de coisa
móvel apreciável, para proveito próprio ou alheio, por funcionário público que
os administra ou guarda”
E
assim entendeu o Juiz de Direito Dr. Gustavo Nardi da Comarca de Monte Mor do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ao sentenciar o processo 1000523-19.2018.8.26.0372,
que na situação fática apurou o repasse de valores recebidos por funcionários à
vereadora:
“Ante
o retro exposto e todo o mais que consta dos autos, JULGO PROCEDENTE a
pretensão punitiva veiculada na denúncia para CONDENAR os acusados.........como
incursa, por nove vezes, no artigo 313, em continuidade delitiva prevista no
artigo 71,caput, e no artigo 158, §1º, todos do Código Penal e
................., como incurso, por nove vezes, no artigo 313, em continuidade
delitiva, prevista no artigo 71,caput, e no artigo 158 §1º, ambos c/c artigo
29, caput, todos do Código Penal, cada um à pena de 06 (seis) anos e 10 (dez)
meses de reclusão e 28 (vinte e oito)dias multa, no patamar mínimo, em regime
inicial semiaberto, além da perda do cargo, função pública ou mandato eletivo,
bem como para CONDENAR,................... qualificada nos autos, como incursa,
por nove vezes, no artigo 313 c/c artigo 29 caput, em continuidade delitiva
prevista no artigo 71 caput, todos do Código Penal à pena de 01 (um) ano e 06
(seis) meses de reclusão, mais 15 (quinze) dias-multa, no patamar mínimo, em regime
inicial aberto. DATA 17/12/2019 [3]
Que,
há o entendimento que a prática da “rachadinha”, caracteriza o crime de
estelionato, inclusive associado à organização criminosa como entendeu a Juíza
de Direito Dra. Ana Paula Achoa Mezher, ao sentenciar o Processo de n. 0009511-15.2016.8.26.0405,
município de Osasco do Tribunal de Justiça de São Paulo:
“CONDENO o acusado..., qualificado nos autos,
como incurso nos artigos 2º, §§ 3º e 4º, inciso II, da Lei n.º12.850/13; art.
171, caput, por 40 (quarenta) vezes, c/c art. 71 (continuidade delitiva), ambos
do Código Penal; art. 171, caput, por 45 (quarenta e cinco) vezes, c/c art. 71
(continuidade delitiva),ambos do Código Penal; art. 171, caput, por 44
(quarenta e quatro) vezes, c/c art. 71 (continuidade delitiva), ambos do Código
Penal; art. 171, caput, por 45 (quarenta e cinco) vezes,c/c art. 71
(continuidade delitiva), ambos do Código Penal; art. 171, caput, por 32 (trinta
e duas)vezes, c/c art. 71 (continuidade delitiva), ambos do Código Penal; art.
171, caput, por 38 (trinta e oito) vezes, c/c art. 71 (continuidade delitiva),
ambos do Código Penal; art. 171, caput, por 32 (trinta e duas) vezes, c/c art.
71 (continuidade delitiva), ambos do Código Penal; art. 171, caput, por 30 (trinta) vezes, c/c art. 71
(continuidade delitiva), ambos do Código Penal; art. 171, caput,por 45
(quarenta e cinco) vezes, c/c art. 71 (continuidade delitiva), ambos do Código
Penal; art.171, caput, por 43 (quarenta e três) vezes, c/c art. 71
(continuidade delitiva), ambos do Código Penal; art. 171, caput, por 18
(dezoito) vezes, c/c art. 71 (continuidade delitiva), ambos do Código Penal; art. 171, caput, por 12 (doze) vezes,
c/c art. 71 (continuidade delitiva), ambos do Código Penal; todos na forma do
art. 69, caput, do Código Penal, às penas de 7 anos, 9 meses e 15 dias de
reclusão, em regime inicial semiaberto, e, pagamento de 34 dias-multa, fixada
em 1/6 do salário mínimo...”
Que para alguns juristas e julgado, a prática
da “rachadinha” nos órgãos públicos, é tipificada como crime de concussão
(exemplo de julgado abaixo) que é obtenção de vantagem indevida em razão da
função tipificado no artigo 316 do Código Penal, como entendeu o v.acórdão do
Tribunal de Justiça de São Paulo Processo n. 1002546-56.2018.8.26.0462 do
Município de Poá.
“...Isto
porque, ainda que o repasse, em um total de R$12.000,00 (doze mil reais), tenha
se estendido por doze meses, ocorrendo, portanto, parceladamente, com o
pagamento de R$1.000,00 (mil reais) em espécie, por mês, de Jorge a Domingos, o
crime de concussão é de natureza formal, consumando-se com a exigência da
vantagem indevida, sendo o recebimento desta mero exaurimento da conduta...
Desta forma, DOU PARCIAL PROVIMENTO ao recurso, para, afastando o crime
continuado, alterar a pena imposta ao apelante.................para 4 (quatro)
anos de reclusão, em regime inicial semiaberto, e pagamento de 20 (vinte)
dias-multa, calculados à razão de 1/10(um décimo) do salário mínimo, passando a
estar incurso no art. 316,caput, c/c art. 92, inciso I, alínea “a”, ambos do
Código Penal, mantida, no mais, a respeitável sentença de primeiro grau”[4]
Que, para alguns juristas e
julgado, a prática da “rachadinha”, em tese representa improbidade
administrativa que importa enriquecimento ilícito e/ou prejuízo ao erário
público, em que a exigência de repasse de parte de salário de assessores,
configura ato improbo, em conformidade com a Lei 8.429/1992, que é a Lei de
Improbidade Administrativa.
Abaixo
Jurisprudências, que considerando a prática da “rachadinha” como improbidade administrativa:
Ação
civil de promoção de responsabilidade por improbidade administrativa. Processo
conduzido em ambiente de ampla liberdade probatória conferida ao réu.
Indeferimento de nova oportunidade para oitiva de testemunha bem justificado
nos termos do parágrafo único do art. 370 do CPC. Inexistência de cerceamento
de defesa. Vereador. Apropriação de parcela dos vencimentos de servidora
comissionada. "Rachadinha".
Prática ilícita (grifo nosso) que não se justifica na alegação de
empréstimo pessoal não formalizado, exigível em contexto de relações funcionais
informadas pela moralidade e pela probidade administrativas. Inexistência de
excepcionais relações pessoais que autorizassem contrato verbal. Prisão em
flagrante e condenação criminal transitada em julgado. Ilícito bem reconhecido.
Penas fixadas com moderação. Observação: acréscimo patrimonial ilícito ora
circunscrito à parcela de três remunerações mensais da servidora. Sentença de
procedência mantida. Recurso improvido, com observação. (TJSP; Apelação
Cível 1005195-54.2016.8.26.0400; Relator (a): Luis Fernando Camargo de
Barros Vidal; Órgão Julgador: 4ª Câmara de Direito Público; Foro de Olímpia
- 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 12/08/2019; Data de Registro:
15/08/2019).
APELAÇÃO
- AÇÃO CIVIL PÚBLICA – IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – Improbidade Administrativa
– Exigência indevida de parcela dos
salários de funcionárias comissionadas em troca de manutenção no cargo ocupado
(grifo nosso) – Sentença de procedência – Decisão que merece ser mantida – Inexistência
de cerceamento de defesa – Oportunidade de se manifestar posteriormente à
juntada dos documentos apontados – Inexistência de vício apto a macular a
decisão – No mérito, as provas dos autos se mostram bastantes a justificar a
sanção aplicada pelo juízo a quo – Depoimentos das testemunhas que apresentam
coerência interna e se complementam – Além de estarem em consonância com as
provas documentais, que, embora isoladamente insuficientes, corroboram as
alegações trazidas pelas testemunhas – Extratos das contas bancárias das
autoras que demonstram saques de quantias compatíveis com a forma de repasse
dos valores alegada pelas servidoras – Provas indiciárias que se mostraram, no
caso em tela, bastantes para a caracterização da conduta ímproba - Precedentes
desta Corte - Recurso desprovido. (TJSP; Apelação Cível
0006532-80.2014.8.26.0363; Relator (a): Rubens Rihl; Órgão Julgador: 13ª
Câmara Extraordinária de Direito Público; Foro de Mogi Mirim - 2ª Vara;
Data do Julgamento: 03/12/2017; Data de Registro: 05/12/2017).
Que, outros juristas tipificam em suas teses a prática da “rachadinha” como o delito
de corrupção passiva, que é quando o servidor solicita, para si ou para
terceiros, uma vantagem indevida, consubstanciado no artigo 317 do Código
Penal:
CORRUPÇÃO
PASSIVA
Art.
317 - Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente,
ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem
indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:
Pena
– reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e
multa. (Redação dada pela
Lei nº 10.763, de 12.11.2003)
§
1º - A pena é aumentada de um terço, se, em conseqüência da vantagem ou
promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou
o pratica infringindo dever funcional.
§
2º - Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com
infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem:
Pena
- detenção, de três meses a um ano, ou multa.
Que,
não menos importante observarmos as decisões de outros Tribunais de Justiça,
referente à prática da “rachadinha” em Minas Gerais vereadores foram condenados.
Na situação fática, apurou-se que valores foram destinados à mulher de um dos vereadores:
“Os
valores descontados eram destinados à mulher de Ailton, Marilene Cristina, que
prestava serviço voluntário. Ela também foi condenada a um ano de detenção e
cinco meses de em regime aberto. Por ser primária e ter confessado, sua pena
foi transformada em prestação de serviços à comunidade e pagamento de um
salário mínimo a uma instituição assistencial.”[5]
Que,
em Santa Catarina o vereador que exigiu parte do salário de seus assessores foi
condenado por improbidade:
“A
pena aplicada por unanimidade pela Primeira Câmara de Direito Público do TJSC
foi de multa de 20 vezes os valores recebidos em vista da divisão do salário do
assessor, suspensão dos direitos políticos por três anos e proibição de
contratar com o poder público pelo mesmo prazo. A decisão é passível de
recurso. (ACP n. 0002305-73.2012.8.24.0007).”[6]
Que, além dos julgados, cidadãos e
juristas precisam atentar-se aos casos que tem ganhado repercussão de mídia, de
políticos envolvidos na prática conhecida vulgarmente como “rachadinha”, o mais
recente é o do ex-vereador e animador de TV Marco Antonio Ricciardelli, o
Marquito, o caso está sendo investigado desde o ano de 2016, e envolve 45
pessoas, sendo que no mês de Novembro do ano de 2019, o juiz do Departamento de
Inquéritos Policiais (Dipo) Fabio Pando de Matos decretou a quebra de sigilo
bancário do período de 12 de janeiro de 2013 a 31 de março de 2016.[7]
Destarte
o caso de destaque que obteve notoriedade e atenção da prática da “rachadinha”,
foi consequência da chamada Operação Furna da Onça, conduzida pela Polícia
Federal para investigar corrupção na Assembleia Legislativa do estado do Rio de
Janeiro (Alerj), que envolveu o nome de Flavio Bolsonaro.[8]
Como
se vê, atualmente o consenso é que a prática conhecida como “rachadinha”, é ilegal
e imoral, porém, os julgados e jurisprudências nos mostram, que a tipificação
da conduta irá depender de como a situação fática aconteceu, sem desmerecer a
gravidade da prática, vez que, na maioria dos julgados, os nobres julgadores
são enfáticos em afirmar que tal conduta é odiosa vinda de um representante do
povo, que no mínimo afronta os princípios da Administração Pública elencados no
artigo 37 da Constituição Federal, como bem salientou o Desembargador-relator
do Tribunal de Justiça de Santa Catarina Dr. Pedro Manoel Abreu, que em seu
voto ao julgar recurso da Ação Civil Pública n. 0002305-73.2012.8.24.0007 destacou que:
“...
é certo que configura afronta aos princípios da Administração Pública da
legalidade e da moralidade, enquadrando-se no art. 11º da mesma norma legal. "É o escárnio à decência, às regras
de conduta, à Lei, ao próprio ordenamento jurídico e à coletividade",
considerou”
Assim,
é importantíssimo lembrarmos que os representantes do povo, ocupam cargo
que requer extrema responsabilidade e comprometimento, com a coletividade, e a prática da “rachadinha”
é situação gravíssima para um representante do povo, que ao comete-la demonstra
não estar à altura para desempenhar o cargo que foi eleito, é inadmissível, um
representante do povo se valer de seu cargo para obter vantagens em seus “negócios”
particulares.
No
mais importante destacar que, a tese de que o salário pertence ao funcionário,
é privado, e não público, e ele pode fazer o que quiser com a verba, não é
acatada por nossos tribunais, vez que, a prática, no mínimo, afronta o
princípio da moralidade administrativa, e, caracteriza ato improbo, ou seja,
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA, além de que, não acredite na falácia que a “rachadinha”
só acontece quando o valor do repasse é depositado na própria conta do político,
como visto nas decisões judiciais acima o repasse de valores acontece de várias
formas.
DENUNCIE
A “RACHADINHA”
[1] https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/09/13/O-que-%C3%A9-a-rachadinha.-E-como-ela-aparece-na-pol%C3%ADtica-hoje
[2] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50842595
[3]http://esaj.tjsp.jus.br/cjpg/pesquisar.do;jsessionid=0EC5D976E8B7CD37A41C34BE5FBC4E1F.cjpg1?conversationId=&dadosConsulta.pesquisaLivre=repasse+de+parte+do+sal%C3%A1rio+assessor&tipoNumero=UNIFICADO&numeroDigitoAnoUnificado=&foroNumeroUnificado=&dadosConsulta.nuProcesso=&dadosConsulta.nuProcessoAntigo=&classeTreeSelection.values=&classeTreeSelection.text=&assuntoTreeSelection.values=&assuntoTreeSelection.text=&agenteSelectedEntitiesList=&contadoragente=0&contadorMaioragente=0&cdAgente=&nmAgente=&dadosConsulta.dtInicio=&dadosConsulta.dtFim=&varasTreeSelection.values=&varasTreeSelection.text=&dadosConsulta.ordenacao=DESC
[4]https://esaj.tjsp.jus.br/cposg/show.do?processo.codigo=RI004W5CT0000&processo.foro=990&processo.numero=10025465620188260462&gateway=true#
[6] https://mpsc.mp.br/noticias/vereador-que-exigia-parte-de-salario-de-assessor-e-condenado-por-improbidade
[7] https://noticias.r7.com/sao-paulo/justica-quebra-sigilo-de-marquito-e-mais-45-para-investigar-rachadinha-22012020